Ficar doente para poder existir?
A exclusão social é tema de debate onde múltiplas perspectivas são defendidas. A falta de um consenso contribui por banalizar a condição, ocultando suas especificidades reais, dificultando o surgimento e implementação de iniciativas que visem sanar essas condições, ações essas que muitas vezes são efetivadas de modo limitado e lento, presas a burocracias e interesses políticos questionáveis.
Partindo do fato de que o homem é um ser social, ele produz ideais, tem desejos, assimila sistemas de valores e de normas que o impulsionam a querer alcançar projetos que serão sempre atuantes, tanto a nível grupal quanto individual. Sartre considera que o ser humano é livre por possuir liberdade de consciência, por isso, o projeto está sempre atuante na perspectiva da transcendência como forma de reafirmar essa transcendência, direcionando constantemente o homem para o futuro.
A perspectiva de projeto está implícita em todo o trabalho de civilização, não há como escapar a ele, afirma Sartre. Muitos especialistas o vêm como um “sintoma da normalidade” e fornecem elementos teóricos sobre os quais se pode apoiar para propor uma articulação entre as perspectivas psicanalítica e existencialista. Não se pode viver de um modo “normal” sem se fazer projetos, e para isso é necessário negar a morte, pois por ser imprevisível e certa, o homem precisa assegurar uma satisfação que pode ser conquistada através do alcance dos seus ideais de vida. O projeto é o elemento de ligação entre o presente, passado e futuro, elaborado pela negação, igualmente trabalhado em nível individual, coletivo, institucional e civilizador.
Muitas sociedades modernas têm no Estado o organismo principal de criação e de regulação de mecanismos que visam a integração social e ele faz com que a participação concreta dos indivíduos na sociedade se realize e seja, fundamentalmente, reconhecida através do trabalho e da proteção social. Mas essa realidade é praticamente negada aos sujeitos que pertencem a meios sociais desfavorecidos e que permanecem à margem das grandes dimensões institucionais (educação, saúde, trabalho), e que se beneficiam minimamente das mesmas, numa posição social frágil podendo facilmente perder o lugar que ocupam no interior dessas dimensões. Essa condição gera nos excluídos, a formação da inutilidade subjetiva, do não reconhecimento da potencialidade do sujeito para participar da vida coletiva e integrar-se aos valores sociais considerados positivos.
Essa condição de menos valia acaba por gerar o surgimento de outro problema, o sofrimento social que é proporcional à tentativa ou desejo de se obter o reconhecimento institucional através da doença. Essa realidade gera o deslizamento do sofrimento social para o individual denunciando que as categorias institucionais ignoram formas de mal-estar que não sejam etiquetadas como doença. Daí, a exclusão exercida tanto pelos mecanismos oficiais quanto pela própria sociedade civil contra esses indivíduos, na prática da rotulação, na indiferença, na marginalização, no asco.
Dessa maneira, os indivíduos encontram no corpo doente um modo de ter a cidadania reconhecida ao preço de experimentarem um grande sofrimento moral que lhes rouba a dignidade e a autoconfiança. Ao mesmo tempo em que a doença física encontra o reconhecimento institucional, mascara as angústias do sofrimento de origem social onde, provisoriamente, o foco sai do sofrimento gerado na esfera social para o indivíduo doente.
Enquanto o sistema protege minimamente a sobrevida desses indivíduos, ignora explicitamente a necessidade de se criar meios eficazes de prevenção desse flagelo, reforçando a participação institucional do sujeito somente a partir de sua doença, da sua disfunção biológica.
Num mundo onde se almeja tanto a paz, estamos muito longe de alcança-la, uma vez que, de acordo com a escala das necessidades básicas de Maslow, os indivíduos precisam inicialmente de se alimentar, gozar de saúde física, psíquica, moral e emocional que as tornem aptas a atingirem um nível mais elaborado de consciência. Nível esse que lhes torne capazes de assimilar conceitos mais elevados sobre sua própria existência e seu papel no mundo.
Para tanto, concluo, temos ainda muito trabalho a fazer e ele só pode começar a nível individual pautado no genuíno desejo de se auto aprimorar. Precisamos profundamente da consciência e da cooperação de todos aqueles que já estejam predispostos e que, por um privilégio da vida, não precisam ficar doentes para serem reconhecidos como pessoas cidadãs merecedoras do seu lugar ao sol.