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Desenho na terapia: O mapa da alma


O desenho como imagem do inconsciente

Certa vez, Freud se referiu a uma capacidade da nossa mente de banir da consciência, memórias emocionalmente perturbadoras que nos causam sentimentos desagradáveis como medo, tristeza ou mágoa, por exemplo. Esse é um dos mecanismos de defesa que serve para nos poupar de sofrermos demasiadamente devido a experiências traumáticas sobre as quais ainda não temos condições de enfrentar ou resolver.


Embora as lembranças traumáticas sejam temporária ou permanentemente banidas da consciência, volta e meia elas podem se manifestar influenciando as nossas reações e pensamentos. Elas podem, inclusive, nos sabotar porque prejudicam a nossa capacidade de interpretação da realidade, fazendo com que distorçamos as leituras que fazemos a respeito dos acontecimentos, das pessoas e de nós mesmos. É o caso, por exemplo, de alguém que foi dolorosamente abandonado às vésperas de seu casamento e que por isso, e sem que perceba, nunca mais conseguiu estabelecer vínculos mais fortes com outra pessoa porque inconscientemente teme a possibilidade de ser abandonado novamente.


Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço, apoiou o conceito de Freud sobre repressão do material emocionalmente perturbador, porém ele descobriu que a prática da arte favorece a liberação dos elementos inconscientes que geram sofrimento. Obviamente, isso também pode ocorrer gradualmente à medida que uma pessoa se engaja em sua psicoterapia, mas acontece mais perceptivelmente quando ela se solta livremente na produção artística e tem disponibilidade para estudar seus trabalhos junto a um terapeuta que tenha o olhar adestrado para isso.


A partir do momento em que as lembranças dolorosas são liberadas para a consciência, temos uma nova oportunidade para trata-las com um novo modo de olhar. É assim que conseguimos reinterpretar a circunstância dolorosa, entender as partes envolvidas, identificar também nossa parcela de responsabilidade e nos libertar da carga emocional que por algum tempo nos influenciou e até mesmo nos tornou suscetíveis ao adoecimento por causa da somatização. Tudo isso acontece num processo dinâmico de cura num ambiente acolhedor junto a um profissional preparado para nos auxiliar.


Segundo Jung, a arte funciona como um recurso que o indivíduo utiliza para aumentar seu domínio sobre a realidade. As imagens formadas durante as sessões de terapia podem ser vistas como autorretratos da mente produzidos pela energia psíquica, o que torna toda obra uma concretização simbólica dos fenômenos mentais que estão atuando na vida da pessoa naquele instante.


A arte oferece um nível de liberdade de expressão que é favorável a esse processo de autoconhecimento, o qual se estrutura a partir da análise dos elementos simbólicos presentes. Ao visualizar o autorretrato do seu panorama psíquico, a pessoa tem a oportunidade de dialogar a respeito do que vê, passa a se entender melhor, a identificar suas limitações e os meios possíveis para promover as mudanças necessárias em sua vida. Ou seja, ela amadurece, sai de um estado infantil de identificação para um estado de maior diferenciação, o que favorece uma ampliação de sua consciência.


Desse modo, a pessoa se identifica menos com as condutas e valores encorajados pelo meio em que vive e passa a ter mais contato com as orientações derivadas do Si-mesmo, ou seja, a totalidade de sua personalidade individual. Podemos exemplificar isso no caso de uma pessoa que se sente extremamente oprimida na empresa onde trabalha, mas que se impõe a obrigação de suportar as pressões para poder manter uma boa imagem perante a sociedade, a imagem de alguém responsável que trabalha e paga suas contas. Enquanto isso, o corpo da pessoa passa a sinalizar os efeitos insalubres desse estilo de vida apresentando adoecimentos permanentes, somatizando o caos psicológico na chamada síndrome de Burnout. A pessoa pode até ter consciência sobre o contexto profissional estar lhe gerando sofrimento, mas não consegue se posicionar e identificar soluções para isso.


Certa vez atendi uma pessoa que durante o processo terapêutico produziu desenhos contendo elementos simbólicos que a fizeram se lembrar de um período da infância. Na época, seu pai estava desempregado e a família sofreu grandes privações materiais. A circunstância foi especialmente marcante porque ela se lembrou de que sofreu bullying na escola por causa dos seus calçados velhos. Ao identificar que o mal estar vivido na infância foi gerado por dificuldades econômicas, ela percebeu que na verdade tinha um grande medo de ficar desempregada e vivenciar a mesma vulnerabilidade. Assim, ela pôde experimentar um grande alívio da carga emocional e passou a ter condições de pensar racionalmente sobre seus próprios limites de tolerância a pressões com capacidade para traçar metas realistas e seguras na busca de soluções.


A terapia Junguiana pode ser aplicada a crianças e adultos devido a essa particularidade de valorizar o teor simbólico de produções artísticas como evidências do inconsciente. É importante frisar, entretanto, que a análise não é tão simplista quanto possa parecer. Um conjunto de fatores é levado em conta na hora de considerar válido ou não um ou outro símbolo.


A título de dar mais um exemplo do que estamos falando, faremos o relato de um fato que acompanhamos no atelier de desenho do instituto. Um dos procedimentos iniciais nos nossos cursos é a realização de sondagens para verificarmos os níveis de prontidão, percepção e coordenação motora fina dos alunos novatos. Há alguns anos, recebemos um garoto de oito anos de idade para o curso de desenho. Entre outros traços, observamos que o garoto que agora chamaremos de Pedro, se apresentou com grande timidez, com aparente dificuldade para responder perguntas simples como qual era o seu nome ou o que gostava de desenhar. Ele apresentou significativa insegurança também ao segurar o lápis e riscar o papel.


Ao pedirmos a Pedro para desenhar qualquer coisa que desejasse, ele nos apresentou uma imagem contendo duas enormes pedras como o Pão de Açúcar do Rio de Janeiro, com uma pequena casa sobre cada uma delas. O céu estava totalmente nublado e havia no mar, um barquinho de papel com uma pessoa nele. Perguntamos quem era a pessoa e ele disse: “Essa pessoa sou eu”.


Quando Pedro disse que a pessoa no barquinho era ele, sinalizou que o contexto merecia mais atenção de nossa parte. Não foi preciso muito trabalho para identificarmos que a criança estava diante de um dilema e da possível necessidade de ter que fazer uma escolha entre duas opções.


Não perguntamos mais nada para a criança, mas nos perguntamos sobre de quem seriam aquelas casas. Por que as pedras eram tão grandes? Por que o meio de acesso às casas era por escadas de cordas especificamente difíceis de transpor? Por que ele está num barco de papel e não de madeira? Por quanto tempo um barquinho de papel suporta estar em contato com a água antes de se desmanchar e naufragar, principalmente na iminência de uma grande tempestade?


Estava evidente que a situação envolvia tempo, prazo determinado (até a chuva começar a cair ou até o barquinho começar a se desmanchar), e envolvia emergência e medo (vou naufragar e morrer?). Ficou claro o nível de ansiedade e sofrimento em que Pedro se encontrava e numa atitude de auxiliar a criança, já que em nossa opinião, aquele desenho foi um claro pedido de socorro, apresentamos o desenho à sua avó que veio busca-lo ao final da aula. Ela disse que os seus pais estavam se separando e que realmente Pedro havia sido convidado a escolher com qual deles desejava morar depois da separação. A criança, inclusive, já estava apresentando sintomas fisiológicos como perda do apetite, agressividade e uma recente dificuldade no controle dos esfíncteres, o que estava lhe gerando sentimentos de confusão, insegurança e constrangimento.


Falamos à avó sobre o grau de comprometimento emocional e psicológico que uma decisão difícil como aquela representava para a criança, que ela não tinha condições de decidir e que o ideal seria que os pais expressassem mutuamente e com sinceridade o desejo de tê-lo em suas companhias. Sugerimos que ela lhes pedisse para expressarem o seu amor ao filho e dizerem que repensaram o pedido porque perceberam que ambos o queriam por perto, que preferiram dizer a Pedro que ele poderia revezar sua estadia em ambas as casas sempre que desejasse.

Na semana seguinte a esse episódio, o garoto chegou à aula de desenho totalmente diferente, sorrindo e interagindo com os colegas e com as atividades com entusiasmo e tranquilidade. Um simples desenho, mas rico em informações perceptíveis ao olhar atento foi decisivo para a identificação do conflito e a definição das soluções num trabalho de aconselhamento e orientação familiar.


Esse é apenas um dos vários exemplos da utilidade da arte nos processos de autoconhecimento registrados ao longo da nossa atuação como arte educadores. Fato que comprova que a expressão artística é uma eficiente ferramenta quando também é utilizada com enfoque psicoterapêutico.

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